domingo, julho 01, 2007

Reflexões Caseiras 11

FAREI COM QUE A MORTE ME AME


Romeu, uma vida ausente do mundo presente em que esbarrou.

Margarida olhou para ele pelo espelho retrovisor do Ford Fiesta. Onde estava o brilho dos seus caracóis de bebé? Onde estava o sorriso de menino que estende os bracinhos para o regaço acolhedor? Onde estava o olhar vivo e interrogativo de quem chega a este mundo com vontade de comunicar? Viu-lhe o olhar baço espreitando por detrás do cabelo comprido sujo e desgrenhado, uma das mãos no bolso roto das calças pardas, a outra estendida a medo, envergonhada. Na camisola de algodão azul-escuro, como que a provocá-la, sobressaía, estampado em letras vermelhas, “The Boys Of Success Famous Band ”.
Permaneceu dentro do carro observando discretamente o rapaz, enquanto fingia procurar o porta-moedas na carteira. Deve ter uns vinte anos, pensou. Não sei o que hei-de fazer, tenho sempre este problema: dou-lhe dinheiro? Não dou? Como é que posso pôr-lhe uma moeda na mão e pronto, vou à minha vida? Dar pressupõe mais qualquer coisa, só o dinheiro é insultuoso, frio, desigual. Quem me ouvisse aqui a pensar alto... Pois, eu não dizia... aquele casal até ficou a olhar para mim com ar espantado. Deve julgar que não estou boa da cabeça, para aqui a falar sozinha...Tantas vezes que estaciono neste parque e nunca o vi.
O rapaz aproximou-se.
― Bom dia! ― disse Margarida, olhando para ele. ― Nunca o tinha visto. Vive aqui perto?
― Se eu vivo aqui perto? Não, nem aqui nem em lado nenhum. A vida não quer nada comigo, arrasto-me, mais nada. ― Reparou que, por momentos, o olhar baço desaparecera, dando lugar a um brilho de raiva prestes a saltar.
― Mas ainda é tão novo... Como se chama?
― Romeu. Sem Julieta. ― disse, o desânimo de novo por companhia.
― Por enquanto... mas há-de encontrá-la!
Romeu não reagiu, apenas olhou para Margarida com uma expressão incrédula. Na sua mão indecisa continuava escondida a moeda que ela teimava em não querer soltar.
― Olhe, Romeu, agora tenho que ir trabalhar mas amanhã, se estiver aqui, voltamos a conversar mais um bocadinho ― arriscou. Aquele brilho de raiva era sinal de que no rapaz ainda havia vida. ― Até amanhã!
No dia seguinte Romeu não estava lá.
Durante um mês não voltou a vê-lo.
Numa manhã de sábado, atravessando a Avenida de Ceuta a caminho da praia, Margarida reparou nele. Caminhava curvado e sujo, dirigindo-se para aquele monte maldito, em busca de... Pela encosta acima, rapazes e raparigas, vestidos de velhos doentes, dobrados sobre si mesmos, em grupos de dois e três, alheados de tudo, concentrados apenas nos seus próprios braços, nas suas pernas magras. As lágrimas vieram-lhe aos olhos, ficou sem saber o que fazer. Malvada droga! Aquele rapaz tinha-a impressionado, nem sabia bem porquê. Tinha pressentido nele uma grande dignidade. Não lhe pedira dinheiro, ou insistira para que ela lho desse. “Uma moedinha, hoje ainda não comi”, costumavam dizer insistentemente outros que encontrava por essas ruas fora. E naquela frase... “Romeu. Sem Julieta.”, tinha sentido alguma ironia velada.
Continuou o seu caminho, atravessou a ponte, chegou à praia, o pensamento preso na Avenida de Ceuta: pode ser que amanhã o encontre outra vez no parque de estacionamento. Era-lhe imperioso saber mais alguma coisa dele! Terá mãe?
Passaram-se algumas semanas sem que Romeu aparecesse. Até que um dia, tinha ela acabado de estacionar o Fiesta... Que diabo de nome para dar a um carro! Festa... só para alguns!
Será que é ele? Ah! como está diferente. Ainda mais sujo, tão abandonado! Sentiu um aperto no coração.
― Olá, Romeu! Lembra-se de mim?
Romeu levantou devagar os olhos do chão e fixou-os demoradamente na rapariga, como se procurasse recordar-se de quem ela era. Percebeu que ele a tinha reconhecido.
― Então por onde tem andado? Não o tenho visto por aqui! Não chegámos a continuar a nossa conversa, lembra-se?
― Farei com que a morte me ame. Farei com que a morte me ame. ― ouviu-o dizer baixinho, fixando o olhar no vazio do seu mundo.
Permaneceu calada durante alguns segundos, sem saber o que dizer. Que frase estranha... e tanta tristeza contida nela.
― Farei com que a morte se apaixone por mim! ― disse, olhando-a sem a ver. ― Estou farto desta vida! O mundo acabou para mim. Que raio de nome me puseram: Romeu! Aquele dos filmes de amor! Nunca na vida soube o que isso era, nem em criança...

(Onde estava o regaço acolhedor? Ninguém teria acariciado os seus caracóis de bebé? Alguém sorrira com as suas perguntas de criança? Margarida estremeceu ao pensar nisto.)

― Romeu, ainda é tão novo! Porque quer morrer? E já reparou que não se pode forçar o amor? Sabe por experiência própria como isso é verdade... ― arriscou dizer.
Ele olhou para ela. Continuou:
― O amor não se força, Romeu, dá-se e recebe-se, sem constrangimentos. Ainda que queira, não pode obrigar a morte a amá-lo... nem ela poderá amá-lo, ela é uma intermediária. Executa serviços, apenas. Não desista da vida, Romeu.
Viu-lhe os olhos a turvarem-se. A raiva soltou-se: esbracejava, as veias do pescoço salientes, as palavras guardadas há muito saíam-lhe em catadupa.
― Desde pequeno que fui escorraçado. Fui parar a um internato, era um entre muitos, os meus pais abandonaram-me. Sabe o que é ser-se abandonado? Sabe o que isso é? Estou cansado de andar de mão em mão. Isso mesmo, de mão em mão, como um embrulho sem dono. Nem sequer posso dizer que andei de coração em coração. Pode ser que a morte tenha coração... farei com que ela me ame!
― A morte é uma intermediária, Romeu, não se esqueça. Não pode amá-lo. Acredite em mim.
― Acreditar em si? Porquê?
― Porque eu estou a falar-lhe com verdade. Não desista de si mesmo, Romeu. Essa morte a quem quer seduzir... A morte não gosta que a seduzam, é fiel ao seu patrão. Não vale a pena usar esses meios... Está espantado a olhar para mim? Sim, eu vi-o no Casal Ventoso! Já reparou na ironia: Casal Ventoso! O vento não fixa, leva tudo com ele!
― Ninguém se fixou em mim, que me importa o vento? ― disse, num misto de amargura e raiva.
― Já alguma vez foi ao cinema? ― perguntou-lhe ela inesperadamente, sentindo que o tinha surpreendido.
― Não. Só vejo televisão quando... ― hesitou ― às vezes durmo debaixo das arcadas de um prédio onde há uma loja que vende televisões. Eles deixam algumas delas ligadas e eu vejo. Só me deito depois de as luzes se apagarem. Foi aí que noutro dia passou o filme “Romeu e Julieta”.
― E se eu lhe oferecer um bilhete para o cinema, vai?
Romeu olhou-se de alto a baixo, olhou para ela, voltou a olhar-se.
― Eu sei. Isso resolve-se. De vez em quando costuma arranjar roupa lavada, não é? Pode ir ao mesmo sítio buscá-la? Gostava muito que visse o filme “Magnólia”, acho que vai encontrar nele algumas respostas para o seu sofrimento. Depois me dirá.
Passada uma semana Margarida voltou a encontrar Romeu. Pareceu-lhe menos amargurado.
― Então que tal o filme? Gostou?
― Acho que percebi o que a senhora me quis dizer. Afinal andamos todos à procura do mesmo. Até havia um que sofria porque, como ele dizia, “Tenho tanto amor para dar e não sei onde o hei-de pôr.”
― Isso mesmo, Romeu. Já pensou que pode andar por aí alguém à sua espera para aliviar o seu próprio sofrimento? Pode nem ser uma Julieta, apenas uma outra pessoa triste.
Foi a primeira vez que o viu sorrir.
― Tem um sorriso tão bonito, Romeu. Não o guarde, deixe-o ficar para sempre. Irá fazer-lhe falta quando se olhar ao espelho.
― Eu não tenho espelho.
― A montra da loja das televisões... Depois, quando estiver mais habituado a ver-se, eu arranjo-lhe um espelho melhor. Combinado?

Romeu, uma vida menos ausente do mundo presente em que esbarrou.

M

Nove Títulos, Nove Contos, 2000



10 comentários:

Frioleiras disse...

Um beijo,
GRANDE,
para ti,
neste Domingo ...

F.

Anónimo disse...

Romeu enteado da vida, desiludido pelas falsas promessas das drogas, flirtando com a morte...
A brisa da esperança, soprada pelas palavras de Margarida, abana-o, levanta o véu de uma outra realidade, torna até possível um sorriso.
"Irá fazer-lhe falta quando se olhar ao espelho".
Esperemos que sim...
Linda a tua história!
Um beijinho.

Manuel Veiga disse...

gostei muito do teu conto. reconfortante. ainda há anjos entre nós...

None disse...

A esperança percorre este conto;a pergunta inicial "onde estava o brilho dos seus caracóis de bébé" foi muito bem formulada, gostei particularmente dela.

vida de vidro disse...

Um conto de sofrimento e esperança. Era tão bom que acontecesse algo assim aos muitos Romeus deste mundo! **

Teresa David disse...

têm-me dado prazer de ler estas reflecções caseiras. Continua.
Bjs
TD

o Reverso disse...

Ap�s injectar a insulina (sou diab�tico), devo comer.
Tinha o PC � frente, dei a insulina e comecei a ler. E Fiquei preso, esqueci-me e fui por a� abaixo.
De repente lembrei-me, dei um salto e fui comer. Tinha passado quase uma hora.
Foi uma hora de me encantou.
Agora estou atrasado, vou de viagem, tenho que me despachar.
Obrigado.

jawaa disse...

Um conto muito bonito!
Obrigada pela visita e comentário. Afinal, cada qual sente à sua maneira, muitos há que detestam mesmo, assim o disseram em comentários anteriores.
Tens razão, as estátuas são descomunais; mas eu, que tenho ligação ao Oriente por razões meramente espirituais que não cabe aqui explicar,acho um espaço maravilhoso de paz e serenidade, não tanto junto ao lago, mas lá por dentro, nas ruelas. Deslumbra-me, corresponde ao imaginário de criança...
Um beijo amigo

Anónimo disse...

Todos nós um dia, vamos ter que morrer..

..mas, se ele tivesse o don que Tu tens para a escrita, provavelmente nunca pensaria poder dizer "farei com que a morte me ame"

belissimo..obrigado pela partilha..

abraço

intruso

Margarida Noronha disse...

Este teu conto é um grito de esperança.
Pois. Olhou. E o importante é ter olhado e visto.
Hà sempre alguém à espera de um olhar, mesmo que seja só isso.
É assim que começa o contacto.
Acho curioso que espere o amor da morte.
Está aqui mesmo à espera que a amemos para lhe descobrirmos o segredo, o caminho, a tristeza, a revolta, a solidão, o porquê.
Acho mesmo que precisamos de a saber amar. Amemos então se conseguirmos.