sábado, julho 07, 2007

Reflexões Caseiras 15

O MORDILLO PORTUGUÊS

― Não me parece que seja o mundo que não bate certo ― disse Luísa, inclinando ligeiramente a cabeça para trás, na tarefa de dissecar o olhar do seu jovem interlocutor, em pé a seu lado. ― Não acha que o mundo é equilibrado? Repare na natureza, normalmente só se desequilibra quando anda por ali a mão do homem.
― Sim, mas quando me refiro ao mundo, penso nele como o conjunto de pessoas. Muitas vezes invadem-nos com tamanha força que ficamos sem espaço próprio para ver a tal natureza que nos rodeia. Pior do que enfiarem-nos numa prisão! Quem está na prisão sabe que está metido entre quatro paredes. Nós, os que cá andamos por fora, corremos o risco da ilusão de liberdade. Claro que ninguém nos amarra, não sentimos fisicamente essa violência, mas por vezes o ambiente à nossa volta é de tal ordem... Não acha horrível uma pessoa julgar que tem espaço aberto à sua frente e depois esbarrar numa pérfida parede invisível com que não contava e que lhe limita os movimentos? Não lhe parece que isso é uma desilusão tremenda?
― Bem, estou a compreender. Para si... Olhe, já lá vem o metro. Sim, confrontarmo-nos com as nossas ilusões é tarefa penosa... são bocadinhos de nós que desaparecem com elas... Tem razão, a desilusão é terrível... ― disse Luísa, aguardando pacientemente que a porta à sua frente se abrisse e “despejasse” a multidão de pessoas apressadas. ― Vamos entrar, enquanto há algum espaço livre?
― Aquele miúdo ali, por exemplo, não acha uma violência ele andar a pedir? Bem sei que não estende só a mão... toca realmente muito bem... mas mesmo assim...
― Pedir esmola é a parede invisível que se interpõe no espaço aberto do direito a ser cem por cento criança? É isso que quer dizer?
― Uma das paredes invisíveis com que esbarramos... É-se apanhado de surpresa... tanta vez! ― Alexandre olhava agora o nada, pensativo.
― Mas diga-me uma coisa, não acha que esbarrar faz parte da vida? Desde que o nariz não fique partido... E mesmo assim, os cirurgiões podem consertá-lo.
― Nem que seja a murro...
― A murro?!
― Sim, tenho um amigo que um dia, num campeonato de karaté, levou uma “patada” de um meiguinho, e de tal maneira forte, que partiu a cana do nariz. Foi parar ao hospital, onde o médico que o atendeu a pôs no sítio com um murro. O rapaz até viu as estrelas, nem precisando de telescópio!
Luísa riu-se com gosto, imaginando a cena e encontrando-lhe semelhanças com os filmes do Tom and Jerry.
Estou a rir porque me lembrei daqueles desenhos animados em que chovem murros por todo o lado! ― disse Luísa, sentindo necessidade de explicar o seu riso súbito.
― Bem, vou sair na próxima. O Marquês de Pombal não passa hoje sem mim! Pode ser que nos encontremos por cá mais vezes, neste comboio de conhecidos-desconhecidos.
― Quem sabe? E às vezes até se passa de desconhecido a conhecido...
Luísa seguiu o rapaz com o olhar e ainda o viu subir apressadamente os primeiros degraus das escadas. Enigmático este rapaz, pensou.
Chegado ao cimo da escada larga, hesitou por uns segundos quanto à saída para onde deveria dirigir-se. Raramente usava esta estação no seu dia-a-dia, por isso lhe desconhecia os segredos que o levariam mais rapidamente ao exterior. Não era demais chamar-lhes segredos, bem via muitas pessoas paradas no enorme átrio, indecisas e confusas, olhando as indicações expostas. Outras perdiam-se na observação atenta dos episódios de histórias gravados nos azulejos das paredes, debatendo-se depois com a dificuldade da escolha rápida da linha a seguir. “Linha Girassol”, “Linha Gaivota”... a tentação do sol, da quietude dos campos, o desejo do mar sem fim...
Alexandre viu-se finalmente na rua Braamcamp. Pelas indicações dadas pelo amigo, e que ele tinha seguido à risca, a agência de viagens não devia ser longe dali. “De metropolitano é o caminho mais rápido. Sais no Marquês, sobes a rua Braamcamp, meia dúzia de metros à direita encontras a agência de viagens. Aparece de manhã.”, dissera-lhe ele pelo telefone.
Pedira ao patrão para chegar um pouco mais tarde, que precisava de tratar de uns assuntos pessoais, pensava estar de regresso ao serviço por volta das dez horas, o mais tardar. “Assuntos pessoais” era a expressão frequentemente usada pelos colegas de trabalho quando não queriam confidenciar a verdadeira razão dos seus pedidos. No caso dele até poderia revelar o motivo pelo qual não se apresentaria ao serviço às nove horas em ponto, como habitualmente. Não tinha propriamente nada a esconder, até lhe seria gratificante falar no assunto mas, reflectindo melhor, resolvera manter silêncio até estar seguro de que o trabalho viria a ser aceite. No caso de as coisas correrem mal, não queria tornar-se em motivo de conversa maledicente entre os colegas, pois bem sabia que a inveja é companheira predilecta de alguns e hábil na escolha das roupagens com que amiúde se disfarça. Uma barreira invisível com a qual ele queria evitar poder vir a esbarrar...
Lembrou-se então da desconhecida do metro. A rapariga parecera-lhe interessante. Sorriu, ao recordar a última frase dela. Um pouco provocatória, mas até lhe achara graça!
Ali estava ela, a agência de viagens onde trabalhava o tal amigo que sugerira o seu nome. Tinha visto um ou outro trabalho de Alexandre feito nas aulas de desenho que frequentava depois do emprego e, embora leigo na matéria, achara-os interessantes. Por essa razão arriscara dar a conhecer ao patrão o nome do amigo que, supunha, teria capacidades para responder bem à campanha publicitária que a agência se propunha lançar.
Assim se dedicara Alexandre, durante um mês, ao projecto de “uma campanha de Verão agressiva, com o intuito de atrair novos clientes à aventura de viajar”.
Hesitara em aceitar a proposta, pela responsabilidade que implicava, e não só. Entre os vários factores a considerar, pareceram-lhe de peso a escassez de tempo que lhe restava depois do emprego e dos trabalhos obrigatórios do curso, assim como as horas extras que a sua falta de experiência neste campo lhe iria certamente exigir. Finalmente, decidira-se a tomar o trabalho em mãos. Riscos estava ele farto de correr, por isso era mais um a juntar ao lote.
A princípio debatera-se com a dificuldade em pôr no papel a ideia de “uma campanha agressiva”. Bem sabia o que essa frase queria dizer, no entanto rira-se sozinho ao imaginar um enorme cartaz de propaganda com uma multidão de gente quase em pelota, à pancada, numa fila em que era exigido bilhete para entrar numa praia! Certamente que o calor tórrido de um Agosto tornado atractivo por uma qualquer agência de viagens exaltaria facilmente os ânimos, já de si propensos a escaramuças. Seria então perfeitamente imaginável, e até compreensível, que alguém se excedesse perante a ousadia de algum espertalhão que usasse das suas artimanhas para chegar mais depressa ao prazer de um banho fresco.
É isso!, pensara com os seus botões: pelo burlesco e pela caricatura se poderia chegar à ideia central. Se essa agência se intitulava inovadora e pretendia um cartaz diferente e revolucionário, porque não tentar a sorte dessa maneira?
Poisado sobre a secretária do dono da agência de viagens estava ele agora, o tal cartaz que se desejava inovador, pacientemente aguardando o veredicto final.
― Estou a ver que tenho diante de mim o Mordillo português! ― disse-lhe o dono da agência, deixando transparecer nos olhos algo mais do que as suas parcas palavras haviam revelado.

M


Gente Comum
, 2000

10 comentários:

Joana Roque Lino disse...

Olá M.,
Obrigada pela visita. :))

Frioleiras disse...

Um beijo, querida M., neste fim de semana...

Hoje, tive um passeio,
lindo,
a casa duns Amigos
(são bons, os "ombros" dos Amigos...)
na zona do Cadaval.

Respirei
no cimo do monte
nu,
ao som do murmurar
imenso
do vento
ondulando as árvores
maravilhosas...

hfm disse...

Gostei de ler. Um abraço.

teresamaremar disse...

Desculpa, podes enviar-me de novo o endereço de email para onde enviar a foto para esta semana?
Já fizeste o favor de o dar, mas agora que queria enviar foto presumo, por distracção, ter apagado o email.

Obrigada

teresamaremar disse...

Disparate :)... esqueci deixar o meu email

teresamaremar@gmail.com

vida de vidro disse...

Cruzamentos nos acasos do quotidiano. Como sempre, o teu poder de observação e a tua sensibilidade. **

jawaa disse...

Sensibilizaste-me com as palavras deixadas no meu espaço. Obrigada.
É mais um sinal de que estás a tentar reerguer-te olhando outros mundos e sou feliz por isso.
Gosto das tuas reflexões.
Um forte abraço.

bettips disse...

Apontamentos que nos deliciam. Tens uma alma própria ao escrever sobre outras almas: fico sempre à espera que se descubra um mistério qualquer que aqui está sugerido. Beijinhos M.

Manuel Veiga disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Manuel Veiga disse...

um excelente apontamento do quotidiano lisboeta.


gostei especialmente da saudável ironia do "Mordillo português"...