Talvez uma forma de agradecer ao mar? A força da fé x a da natureza?! A força das gentes que atravessam noite, frio e chuva... Pois, não sei. Mas, de repente, parece quase uma reza silenciosa, esta imagem. De entre todas, a preferida da minha emoção. Empata com uma escolha feita por outros sentidos, outros encantos... A da prezada senhora que acaba de te comentar! :-)
As flores a engalanarem a embarcação. Os barcos tem alma sabiam. Sempre se usou flores para assinalar algo de importante, a festa da padroeira, a bênção dos barcos, a colocação da quilha no estaleiro, a bênção no bota abaixo, etc, etc. Também se usam para enfeitar, também se usam pintadas, na borda, tradição muito em uso no Tejo e na ria de Aveiro. As flores fazem parte do ritual de fé dos homens do mar, mas nas festas, são as mulheres que enfeitam na maioria os barcos, com flores verdadeiras, assim com a mesma devoção com que enfeitam o altar do santo padroeiro na igreja.
A propósito conto um pouco de uma tradição que já se perdeu em Viana do Castelo e que felizmente está documentada, tendo sido recriada e vivida por mim uns anos atrás, e era assim em traços largos.
A APANHA DO AZEVINHO
Os pescadores da Ribeira de Viana atribuíam ao azevinho poderes mágicos, espécie de talismã. Assim existia todo um ritual para a bênção do barco com o azevinho. (Falo dos barcos de boca aberta, bateis, catraias e lanchas, como a Fé em Deus da Póvoa de Varzim ou a catraia Fanequeira de Viana, barcos que quase já não existem, salvo a carolice de algumas pessoas interessadas na nossa historia do mar).
A mulher dona do barco geralmente a esposa do Arrais, chamada de Volanteira (nome que surge do nome das artes de pesca usadas; redes volantes ou de deriva), chegado o tempo do bota-abaixo, vai falar com um Romeiro dos muitos que existiam aptos para esses rituais para ir colher ao monte de Stª. Luzia no lugar da Abelheira junto do convento de S Francisco do Monte o azevinho. O azevinho tinha de ser arrancado ao nascer do sol, de forma que partiam em romaria para o monte ainda de noite a cantar, só um homem o romeiro acompanhava a mulher, que podia convidar outras para a romaria. A comitiva tinha regras muito rígidas, as romeiras que iam colher o azevinho depois de passarem pelo convento era constituído em exclusivo por 9 meninas donzelas todas virgens, para atestar a virgindade só podiam ter entre os 7 e os 12 anos de idade, e de nome Marias todas elas No arranque do azevinho as Marias donzelas entoavam cânticos em coro Diziam assim:
Azevinho meu menino Aqui te venho apanhar Para dares sortinha ao barco No colher e no, largar No vender e no comprar.
Depois de arrancarem cada qual, o seu ramo, e depois de pronunciar o ultimo verso, procedem ao borrifo do azevinho com vinho verde, tinto carrascão feito da seguinte forma; usam umas tigelinhas com as quais enchem a boca de vinho, e de seguida borrifam os ramos de azevinho, repetem 3 vezes este ritual de cantar e borrifar o azevinho. Findo este inicio é tempo de petiscar o que a Volanteira trouxe à cabeça num cesto para desjejuar. Com o comer continua-se com as canções as danças e as rodinhas tão características das gentes do mar aqui no norte. A comida também obedece a preceitos, predominam os fritos. Mas não o fiel amigo bacalhau, ele trás retardos, os retardos entendem-se como demoras no despacho dos assuntos do barco. Também não se incluem doces, os doces transformam-se em amarguras! Na merenda predomina o pão de trigo em substituição da broa de milho, sinal de requinte, o trigo era o pão dos ricos, ainda me lembro no tempo que a avó cozia broa de milho. Bebia-se mais do que se comia. Finda a comida era tempo de abalar em direção ao estaleiro. O caminho era um percurso costumeiro, feito sempre que um barco estava pronto para boiar. Andavam e cantavam as canções que se lembravam, pelo meio entoavam as loas ao coração de São Pedro. Chegadas ao barco dão umas voltas ao redor dele, depois saltam para dentro as Marias, sempre a cantar e a dançar, numa festa de alegria. É hora do barco receber o azevinho. A proa e a popa (que nestes barcos são idênticas; barcos de roda de proa e popa e quilha), não podem ter falta de azevinho, assim como as forquetas onde vai repousar a verga com a vela enrolada. Ao acto assiste uma multidão, é sempre uma festa o lançamento de um barco à água, quase uma extensão dos sonhos, das sortes e dos anseios de muitos os que assistem. As Marias entoam então outros versos desta vez uma única vez. Assim:
Azevinho meu menino Aqui te venho pousar Para dares sortinha ao barco No colher e no largar No vender e no comprar
Aqui fazem um último barrufo/ borrifo nos ramos de azevinho. O Romeiro retira-se de bordo e as Marias vão embebedar o barco com um garrafão de vinho que despejam como quem rega por todo o barco. Está terminado o ritual
Também precisa de outra protecção divina o barco Dessa se encarrega o padre da paróquia de Monserrate. Pode ser antes ou depois da bênção do azevinho, mas regra geral, findos estes rituais, o barco não demora a ir para a água. No bota abaixo diz-se:
Vai na graça de Deus! Que ele te proteja!
Também os dias da semana são importantes, as terças e sextas-feiras não são dias bons, são dias aziagos, por isso nunca se fazem as bênçãos ou os bota-abaixo nestes dias. O dia da bênção remata com uma caldeirada feita numa das muitas tabernas/tasca da Ribeira, o mestre é o anfitrião. Participam também o calafate (nome dado ao carpinteiro naval, sendo que hoje o calafate se distingue como o homem que executa o calafeto (vedação com estopa/algodão), do barco), os companheiros da futura campanha (nome da tripulação) e um ou outro familiar ou amigo. As mulheres estão interditas no repasto. O repasto dura, o vinho corre em fartura nas gargantas, as vozes entoam altas, ao toque do sino em São Domingos a lembrar a reza da Santíssima Trindade o repasto termina e os homens respeitosamente de boina na mão rumam a casa onde se deitam na santa paz do senhor. Nos anos cinquenta este ritual ainda se via em Viana. Hoje vive nas lembranças dos velhos lobos-do-mar, poucos que ainda sobrevivem, espécies de museus vivos de saberes ancestrais.
Desculpem as moléstias de um texto tão longo e se calhar tão a despropósito aqui.
Fui ler tudo, com um arrepio. A beleza e a dureza da vida das gentes, que bem que no-la dizes, João! Obrigada também Carlos porque de longe, nos trouxeste tão perto. Abçs
10 comentários:
Linda de morrer e inquestionável na sua representatividade de ritual de pescador.
Mas dizem o quê, as flores engalanando o barco?
Talvez uma forma de agradecer ao mar? A força da fé x a da natureza?! A força das gentes que atravessam noite, frio e chuva... Pois, não sei. Mas, de repente, parece quase uma reza silenciosa, esta imagem. De entre todas, a preferida da minha emoção. Empata com uma escolha feita por outros sentidos, outros encantos... A da prezada senhora que acaba de te comentar! :-)
Boa imagem!
A foto foi tirado numa alvorada na Murtosa, na ria de Aveiro.
Desconheço o significado específico mas faz-me lembrar a canção:
“É doce morrer no mar
Nas ondas verdes do mar.
Nas ondas verdes do mar meu bem
Ele se foi afogar
Fez sua cama de novo
No colo de Iemanjá”
Quando vi a fotografia, antes de ler qualquer comentário, pensei logo num memorial a alguém que tivesse morrido no mar.
Pode ser que o marinheiro esteja a dar graças por qualquer coisa de bom que lhe aconteceu...
Quanto `a foto, uma maravilha!
As flores a engalanarem a embarcação. Os barcos tem alma sabiam.
Sempre se usou flores para assinalar algo de importante, a festa da padroeira, a bênção dos barcos, a colocação da quilha no estaleiro, a bênção no bota abaixo, etc, etc. Também se usam para enfeitar, também se usam pintadas, na borda, tradição muito em uso no Tejo e na ria de Aveiro. As flores fazem parte do ritual de fé dos homens do mar, mas nas festas, são as mulheres que enfeitam na maioria os barcos, com flores verdadeiras, assim com a mesma devoção com que enfeitam o altar do santo padroeiro na igreja.
A propósito conto um pouco de uma tradição que já se perdeu em Viana do Castelo e que felizmente está documentada, tendo sido recriada e vivida por mim uns anos atrás, e era assim em traços largos.
A APANHA DO AZEVINHO
Os pescadores da Ribeira de Viana atribuíam ao azevinho poderes mágicos, espécie de talismã. Assim existia todo um ritual para a bênção do barco com o azevinho. (Falo dos barcos de boca aberta, bateis, catraias e lanchas, como a Fé em Deus da Póvoa de Varzim ou a catraia Fanequeira de Viana, barcos que quase já não existem, salvo a carolice de algumas pessoas interessadas na nossa historia do mar).
A mulher dona do barco geralmente a esposa do Arrais, chamada de Volanteira (nome que surge do nome das artes de pesca usadas; redes volantes ou de deriva), chegado o tempo do bota-abaixo, vai falar com um Romeiro dos muitos que existiam aptos para esses rituais para ir colher ao monte de Stª. Luzia no lugar da Abelheira junto do convento de S Francisco do Monte o azevinho. O azevinho tinha de ser arrancado ao nascer do sol, de forma que partiam em romaria para o monte ainda de noite a cantar, só um homem o romeiro acompanhava a mulher, que podia convidar outras para a romaria. A comitiva tinha regras muito rígidas, as romeiras que iam colher o azevinho depois de passarem pelo convento era constituído em exclusivo por 9 meninas donzelas todas virgens, para atestar a virgindade só podiam ter entre os 7 e os 12 anos de idade, e de nome Marias todas elas
No arranque do azevinho as Marias donzelas entoavam cânticos em coro
Diziam assim:
Azevinho meu menino
Aqui te venho apanhar
Para dares sortinha ao barco
No colher e no, largar
No vender e no comprar.
Depois de arrancarem cada qual, o seu ramo, e depois de pronunciar o ultimo verso, procedem ao borrifo do azevinho com vinho verde, tinto carrascão feito da seguinte forma; usam umas tigelinhas com as quais enchem a boca de vinho, e de seguida borrifam os ramos de azevinho, repetem 3 vezes este ritual de cantar e borrifar o azevinho.
Findo este inicio é tempo de petiscar o que a Volanteira trouxe à cabeça num cesto para desjejuar. Com o comer continua-se com as canções as danças e as rodinhas tão características das gentes do mar aqui no norte.
A comida também obedece a preceitos, predominam os fritos. Mas não o fiel amigo bacalhau, ele trás retardos, os retardos entendem-se como demoras no despacho dos assuntos do barco. Também não se incluem doces, os doces transformam-se em amarguras!
Na merenda predomina o pão de trigo em substituição da broa de milho, sinal de requinte, o trigo era o pão dos ricos, ainda me lembro no tempo que a avó cozia broa de milho. Bebia-se mais do que se comia. Finda a comida era tempo de abalar em direção ao estaleiro. O caminho era um percurso costumeiro, feito sempre que um barco estava pronto para boiar. Andavam e cantavam as canções que se lembravam, pelo meio entoavam as loas ao coração de São Pedro.
Chegadas ao barco dão umas voltas ao redor dele, depois saltam para dentro as Marias, sempre a cantar e a dançar, numa festa de alegria. É hora do barco receber o azevinho.
A proa e a popa (que nestes barcos são idênticas; barcos de roda de proa e popa e quilha), não podem ter falta de azevinho, assim como as forquetas onde vai repousar a verga com a vela enrolada. Ao acto assiste uma multidão, é sempre uma festa o lançamento de um barco à água, quase uma extensão dos sonhos, das sortes e dos anseios de muitos os que assistem. As Marias entoam então outros versos desta vez uma única vez. Assim:
Azevinho meu menino
Aqui te venho pousar
Para dares sortinha ao barco
No colher e no largar
No vender e no comprar
Aqui fazem um último barrufo/ borrifo nos ramos de azevinho.
O Romeiro retira-se de bordo e as Marias vão embebedar o barco com um garrafão de vinho que despejam como quem rega por todo o barco.
Está terminado o ritual
Também precisa de outra protecção divina o barco
Dessa se encarrega o padre da paróquia de Monserrate. Pode ser antes ou depois da bênção do azevinho, mas regra geral, findos estes rituais, o barco não demora a ir para a água.
No bota abaixo diz-se:
Vai na graça de Deus! Que ele te proteja!
Também os dias da semana são importantes, as terças e sextas-feiras não são dias bons, são dias aziagos, por isso nunca se fazem as bênçãos ou os bota-abaixo nestes dias. O dia da bênção remata com uma caldeirada feita numa das muitas tabernas/tasca da Ribeira, o mestre é o anfitrião. Participam também o calafate (nome dado ao carpinteiro naval, sendo que hoje o calafate se distingue como o homem que executa o calafeto (vedação com estopa/algodão), do barco), os companheiros da futura campanha (nome da tripulação) e um ou outro familiar ou amigo. As mulheres estão interditas no repasto.
O repasto dura, o vinho corre em fartura nas gargantas, as vozes entoam altas, ao toque do sino em São Domingos a lembrar a reza da Santíssima Trindade o repasto termina e os homens respeitosamente de boina na mão rumam a casa onde se deitam na santa paz do senhor.
Nos anos cinquenta este ritual ainda se via em Viana.
Hoje vive nas lembranças dos velhos lobos-do-mar, poucos que ainda sobrevivem, espécies de museus vivos de saberes ancestrais.
Desculpem as moléstias de um texto tão longo e se calhar tão a despropósito aqui.
Abraço junto do meu mar das memórias...
Lindo este ritual que nos contas!
Pena que estas coisas se percam...
Obrigada Joao Marinheiro!
Ainda não li, para ficar com a pureza da imagem. Moliceiros e agradecimento, à água que tanto nos dá. Bela imagem para ritual tão nosso!
Fui ler tudo, com um arrepio. A beleza e a dureza da vida das gentes, que bem que no-la dizes, João! Obrigada também Carlos porque de longe, nos trouxeste tão perto. Abçs
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