quarta-feira, setembro 09, 2020

5. Licínia

Íamos e vínhamos e a hora chegava

em que líamos

sentados nos sofás da sala

todos desiguais

um era grande e escarlate

o outro era branco e outro mais pequeno

tinha por cima uma manta de quadrados.

Líamos e de vez em quando falávamos do que líamos.

Raramente estávamos de acordo

como convinha à diferença que cultivávamos

com primores de jardineiro.

Recordo bem a tarde em que lias

relias

um livro sobre trigonometria

em búlgaro

tenho a certeza

a língua em que chegaste a sonhar.

Eu teimava em terminar um poema sobre o Pont-Neuf

que não leste.

Dessa tarde não recordo mais nada.

Talvez tu tenhas adormecido no sofá branco

e eu me tenha embrulhado na manta de quadrados.

Afinal era Fevereiro e fazia frio.

Licínia

10 comentários:

Margarida disse...

Vós sois umas poetisas!

bettips disse...

E olhei, vi Paris. Depois li e confirmei: a poesia na cidade dos amores. Lindo!

Justine disse...

Grande poema, Licínia. Mas também gostaria de ler o outro sobre o Pont-Neuf...conheces a poetisa que o escreveu?

Licínia Quitério disse...

Justine, é só pedir!

“PONT-NEUF”
Fevereiro de 2005
O meu “Pont-neuf” é macho.
Quando há Sol desmaiado, o fim da tarde
dá-lhe a luz oblíqua de Errol Flynn
teimoso por se chamar desejo.
O meu “Pont-Neuf” é fêmea.
Tem a concavidade morna, demorada,
do útero das mulheres
onde novos e velhos pacificam,
esquecidos da forma que não têm.
Estive lá antes ou depois de te amar?
Já tinha havido Maio ou apenas sonhávamos com ele?
Estive lá. Estive. E sempre ao fim da tarde que
por vezes tardava.
Antes ou depois de saber que existias, “Pont-Neuf”?
Obriguei-te a ser mais do que uma ideia.
Teve de ser. Que ideia mais concisa abrigaria
os sonhos dos novos e o sono dos velhos que
nele encontram o quadro do repouso,
chame-se o rasto fino e espumoso
do “bâteau-mouche” ou
a espera sem ânsia do pescador?
(que talvez nem se aviste do “Pont-Neuf”…)
Os nossos lugares são coisas nossas,
mesmo que não existam fora
da urgência de as havermos.

Licínia Quitério, em "Da Memória dos Sentidos"


Justine disse...

Licínia, fiquei a olhar e a sentir a Pont-Neuf com outros olhos e outra emoção.
Obrigada

M. disse...

Paris la belle! A minha cidade amada!

Justine disse...

Licínia, sabes que o Rabih Abou-Khalil tem uma música chamada Pont Neuf? estive a ouvi-lo de manhã e lembrei-me de ti ao ver o título...

mena maya disse...

Adorei este passeio poético!

Licínia Quitério disse...

Justine, vou à procura.

Mónica disse...

leitura de senos e cosenos, tangentes e cotangentes, portanto :)