quarta-feira, abril 13, 2022

6. M.

 

Juventude. A minha, com novas roupagens, horizontes mais alargados, menos timidez, escola laica, feminina ainda, a bata cinzenta clara com o número de bolas e cores diferentes bordadas na parte da frente da cintura consoante o ano frequentado. Professoras exigentes a serem provocadas pelas alunas, disciplinas difíceis, matérias apreciadas, Português, Francês, Inglês, História. Matérias incompreendidas também, mas que se iam estudando com a esperança de as vir a compreender. Nas aulas de Geografia, os nomes dos rios a serpentear no mapa de Portugal e na minha cabeça. As aulas de bordados em bastidor (As artes que eu aprendi! E por acaso até gostava). Nos intervalos, o Jogo do Ringue, o Jogo da Rolha, as corridas no velho pátio das traseiras do edifício. Mas também existia a Mocidade Portuguesa (outra farda obrigatória), o Canto Coral e as canções que provocavam risos quando lhes alterávamos as letras. (Pobre professor!) As amigas que comigo faziam a pé o trajecto para o liceu. Um outro liceu depois, à época uma experiência de escola mista do Ministério da Educação para as alunas da área de Letras após o 5º ano. Uma única turma mista de doze, seis raparigas sentadas nas carteiras da frente, seis rapazes atrás, obrigatoriamente em recintos separados nos intervalos das aulas (!!!). Que tempos tão longínquos. Tão longínquos como as férias de verão. Os meus Pais nunca tiveram o hábito de frequentar sempre a mesma praia, variavam de poiso. A preferência pendeu para a tal aldeia na zona do Bussaco que tem um lugar especial dentro de mim. Foi lá que passeei nos campos com girassóis e corvos a lembrar-me Van Gogh, comi espigas de milho à luz do candeeiro Petromax, apanhei cachos de uvas e amoras, enchi jarros de água na fonte da horta, andei de carro de bois até à Feira da Espinheira, vi dar de comer aos porcos, vi cozinhar chanfana, ouvi os diversos sentimentos expressos no toque dos sinos na limpidez do silêncio (e como eram impressionantes), aprendi com a minha Mãe a encontrar a Ursa Maior no céu nocturno. Foi lá também que tive a companhia das minhas duas amigas especiais, e ríamos tanto. Transformou-se a minha juventude em matura idade e velhice, com a aldeia a gostar da família alargada. Estamos agora as duas mais solitárias e cansadas, mas ainda nos reconhecemos.

M

(Tamara, anos 30, obra de Demetre Chiparus, nascido em 1886 em Dorohoi, Roménia, morte em 1947, em Paris. Bronze, marfim e mármore, 41x66x20 cm. Marcado na saia D.H. Chiparus. No B-MAD, Berardo Museu Arte Deco)

8 comentários:

Justine disse...

M., o teu texto é um passeio de exploração emotiva pela tua juventude, e as fotografias da bailarina transmitem-me movimento e elegância!

Licínia Quitério disse...

Que terna recordação desse teu tempo jovem. O recorte da estatueta é de uma grande e delicada beleza.

Mónica disse...

começando pelo fim: procurei a escultura, é interessante. o pedaço da tua fotografia fez-me lembrar um animal marinho, a barbatana, o filme "a forma de água", aquelas associações de ideias estranhas :)
o teu texto é o desabrochar, a juventude depois da infância, a abertura depois da proteção, cresceu feliz e curiosa, a miúda! achei piada ao código de cores da bata, o que é que diziam as letras alteradas das canções, o que é o jogo da rolha, os rios e as linhas dos caminhos de ferro que passavam sempre pelo Entroncamento?
o jogo do ringue, adorava, atirava com força e até me doía ver a outra a levar com o ringue no corpo. Tinha um ringue verde de borracha dos bons :)))

Anónimo disse...

Idades próximas, recordações idênticas
Luisa

bettips disse...

Uma descrição em traços gerais mas que diz muito sobre o teu poder de observação!
O pormenor é um encanto.

Anónimo disse...

O teu texto fez-me voltar ao tempo em que também eu usei as ditas batas cinzentas com bolas bordadas, no meu caso, a azul escuro. Foi no liceu Raínha Dona Leonor, quando abriu uma sucursal em Alvalade.

A foto está excelente e esse museu é um encanto.

Teresa

M. disse...

O meu era o Rainha D.Leonor na Junqueira.

Mena Maya disse...

Estes teus textos são como um passeio que não queremos que acabe.

O jogo da rolha também não conheço.

A foto é linda!