sexta-feira, janeiro 05, 2007

A memória dói

«Saíram as visitas, passou a hora, e João Mau-Tempo não teve ninguém, caçoam dele os companheiros, são maneiras de virilidade tola, Ela não quer saber de ti, Por esta é que tu não esperavas, enquanto à entrada a pobre Faustina Mau-Tempo lutava para entrar, É aqui que está o meu marido, perguntava ela, que se chama João Mau-Tempo, e o da porta, jocoso, respondia, Não está cá essa pessoa que a senhora procura, e outro achincalhou, Então veio dar o seu marido à prisão, são entretenimentos, esta gente tem uma vida monótona, nem sequer batem nos presos, outros são os que batem, mas Faustina Mau-Tempo não distingue, Está, sim senhor, vocês é que o trouxeram para cá, pois tem de aqui estar, e era uma fúria de pardalito, um arrepio de galinha, uma investida de borrego, nada que tivesse importância, mas enfim o homem pôs-se a folhear um livro e disse, Tem razão, está aí, na sala seis, mas já não pode visitá-lo, passou a hora da visita. Tem Faustina Mau-Tempo direito a este ataque de choro. É uma coluna que se desmorona, vemos como se abrem as fendas e caem os pedaços, e tem os pés feridos esta coluna do latifúndio, agora pode também chorar por isso, por tudo quanto sofreu na vida e ainda há-de sofrer, é o tempo de chorares todas as lágrimas, exagera se puderes, Faustina Mau-Tempo, desfaz-te em lágrimas, talvez consigas tocar o coração destes dragões de ferro, ou se não tiverem coração, porventura não hão-de querer ser incomodados, e sendo tu uma pobre mulher não te vão pôr fora com violência, chora pois, reclama o teu marido, Cale-se lá, mulher, vou ver se é possível abrir uma excepção, e isto é linguagem que Faustina Mau-Tempo não entende, quem sabe se esta prisão se chama excepção, por isso a vão abrir para que eu possa ver o meu marido. Também por caminhos errados se acerta, tudo isto não valerá mais do que cinco minutos, mas é o bastante para tanta saudade, não podendo ser mais, aí vem João Mau-Tempo e traz esperanças, que os camaradas lhe disseram, É de certeza a tua mulher, e é ela, Faustina, João, e estes dois abraçam-se, tanto chora um como o outro, e ele quer saber dos filhos e ela quer saber dele, e já passaram três minutos, e se estás bem de saúde, e tu como tens passado, tens tido trabalho, e a Gracinda, e a Amélia, e o António, estão todos bem, tu é que estás mais magro, tem cuidado não adoeças, cinco minutos, adeus, adeus, dá lá saudades, ai tantas, depois combina-se para cá voltares, agora sei onde é, não me perco, e eu não me perdi, adeus.»

Levantado do Chão, José Saramago, Editora Caminho

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