Tempo perdido
A Senhora da Limpeza
A oficina do relojoeiro tem uma janela que abre sobre um pátio empedrado. É um compartimento relativamente pequeno que nos parece ainda mais reduzido por causa da quantidade de relógios que lhe ocupa o espaço. Poderei talvez dizer que é um espaço de silêncios forçados, a começar pelo do senhor Martins, que pouco fala, ou quando fala, julgo que o faz em tiquetaques. O que não é de estranhar visto que, desde horas que já nem conto, o conheço rodeado de ponteiros e minutos. Confesso que até eu, quando lá vou fazer a limpeza da sala – tem que ser sempre na presença dele, para não haver perigo de eu lhe desarrumar aquela confusão –, dou comigo a pensar que ele é um relógio qualquer no meio daquilo tudo: Do-na Fran-cis-qui-nha, cui-da-do com o pa-no, o-lhe e-sses pa-ra-fu-si-nhos, se al-gum de-sa-pa-re-ce… É assim que ele fala, vagarosamente. Lembra-me o relógio de pêndulo da minha casa: é tão lento, tão lento, que às vezes penso que o pêndulo adormece na viagem para leste e não volta ao lado do oeste.O senhor Martins vive rodeado de relógios pendurados nas paredes da oficina, ainda que de esguelha em escápulas retorcidas pela ferrugem (ou de contrariedade, vá-se lá saber). Costuma sentar-se à mesa de trabalho, com um olho de vidro esquisito encaixado no olho direito, u-ma lu-pa, explicou-me ele um dia. Mas pelos vistos não é suficiente para lhe mostrar o que ele quer ver em pormenor, porque volta e meia aproxima dela os relógios desventrados. Relógios de pulso onde o tempo se cansou de si mesmo, mostradores com tampa de vidro escancarada, parafusos minúsculos estrategicamente colocados à parte para memória futura, ferramentas de vários tamanhos e feitios… Tudo isto espalhado em cima da mesa, cada relógio com seu problema e sua etiqueta e um número escrito à mão, pa-ra não con-fun-dir pul-sos, diz ele. Ao que eu acrescento: – E tiquetaques, senhor Martins… E rimo-nos, uns segundos apenas, ambos por causa do tempo a não perder. Só que eu às vezes estou-me nas tintas para o tempo e demoro-me a olhar lá para fora…
M
Foto de S. e texto de M. publicados no Fotoescrita em Março de 2005.
Foto de S. e texto de M. publicados no Fotoescrita em Março de 2005.
4 comentários:
Tempo delicioso este que ocupei a ler o teu texto.
E memórias, sempre.
Estava a ver-me em pequena numa relojoaria. Assim. Tal e qual. Ainda hoje, ao filho do dono nós chamamos o Tic-Tac. E ele não se ofende. Passado tanto tempo, era o que faltava...
Beijinhos.
J+a tinha gostado muito da fotografia e agora do texto ainda mais. Nas lojas modernas já não nos deixam entrar. lá atrás, onde todos os segredos do relojoeiro estão escondidos!
Obrigada pela visita ao meu blog.
Delicioso texto. Tinha uns 5 ou 6 anos quando me deram um relógio velho para "estragar": maravilha ver tudo por dentro em pormenor, desmontá-lo em tantas pequenas espirais e rodas! Ponho-me a pensar se não seria a Senhora da Limpeza que sacudiu o pano para o pátio ...Bjinho
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