A NEVE PRETA
"Bem sei que estamos fora da estação: o Inverno já lá vai, temos agora aí o calor, a praia, as sombras das grandes árvores, o sol duro que nos amolece, as tardes apetecidas, as noites mornas que ondulam como pesados e macios veludos negros. Falar de neve em Junho mostra uma lamentável falta de sentido da oportunidade. Mas, tal como debaixo dos pés se levantam os trabalhos, também o acaso dos encontros pode inverter a ordem das estações e trazer o Inverno para o pino do Verão e fazer passar por nós um terrível frio que nenhum agasalho será capaz de vencer. Porque, não me cansarei nunca de o dizer, é preciso muito cuidado com as crianças.
Estes pequenos filhos dos homens têm andado pelas minhas crónicas. Mas de crianças tenho falado como quem as conhece bem, só porque também por lá passou. E agora pergunto: que são as crianças? Dez mil pedagogos se preparam para me responder. Afasto de antemão as respostas, umas que já conheço, outras que adivinho, e torno a perguntar: que são crianças?
Que seres estranhos são esses que viram para nós os seus rostos frescos, que nos perturbam às vezes com um olhar subitamente profundo e sábio, que são irónicos e gentis, débeis e implacáveis, e sempre tão alheios? Temos pressa de os ver crescer, de os admitir no clã dos adultos sem surpresas. Somos impacientes, nervosos, porque estamos diante de uma espécie desconhecida... Quando passam a ser nossos iguais, falamos-lhes da infância que tiveram (a que recordamos, como observadores do lado de fora) e sentimo-nos quase ofendidos porque eles não gostam de ouvir lembrar uma situação em que já não se reconhecem. São adultos, agora: outra espécie humana, portanto.
Nessa infância está, por exemplo, a história que vou contar e que devo a um desses tais encontros de acaso. E depois de eu a reproduzir aqui, dir-me-ão se não tenho razões para insistir: é preciso cuidado com as crianças... Não o cuidado comum, que tende a prevenir acidentes, aqueles que aparecem sob esta rubrica nas notícias dos jornais, mas um outro cuidado, mais melindroso e subtil. Eu explico.
Uma professora mandou um dia aos seus alunos que fizessem uma composição plástica sobre o Natal. Não falou assim, claro. Disse uma frase como esta: «Façam um desenho sobre o Natal. Usem lápis de cores, ou aguarelas, ou papel de lustro, o que quiserem. E tragam na segunda-feira.» Assim ou não assim, os alunos fizeram o trabalho. Apareceu tudo quanto é costume aparecer nestes casos: o presépio, os Reis Magos, os pastores, S. José, a Virgem e o Menino Jesus. Mal feitos, bem feitos, toscos ou apuradinhos, os desenhos caíram na segunda-feira em cima da secretária da professora. Ali mesmo ela os viu e apreciou. Ia marcando «bom», «mau», «suficiente», enfim, os transes por que todos nós passámos. De repente... Ah, mas é preciso muito cuidado com as crianças! A professora segura um desenho nas mãos, e esse desenho não é melhor nem pior que os outros. Mas ela tem os olhos fixos, está perturbada; o desenho mostra o inevitável presépio, a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração. Sobre esta cena sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê?
«Porquê?», pergunta a professora, em voz alta, à criança. O rapazinho não responde. Talvez mais nervosa do que quer mostrar, a professora insiste. Há na sala os cruéis risos e murmúrios de rigor nestas situações. A criança está de pé, muito séria, um pouco trémula. E, por fim, responde: «Fiz a neve preta porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu...»
Daqui por um mês chegaremos à Lua. Mas quando e como chegaremos nós ao espírito de uma criança que pinta a neve preta porque a mãe lhe morreu?
(1971)
JOSÉ SARAMAGO (n. 1922)
Deste Mundo e do Outro. Lisboa, Editora Arcádia, 1971, pp. 190-192.
Pedida autorização a Amélia Pais
http://barcosflores.blogspot.com/
http://cristalina.multiply.com/
12 comentários:
neve que derrete o coração mais frio. uma (nova) "balada de neve" que desconhecia...
Impossível. Imparável sentimento.
O olhar.
O do adulto, o da criança.
Beijos, M.
Doeu.
Uma criança a tentar lavar a dor de ter perdido a mãe com lágrimas de neve preta...
Lindo, terno, triste!
Obrigada Manuela, por partilhares connosco este texto escrito com tanta sensibilidade, que nos alerta para estarmos atentos e darmos ouvidos a esses seres maravilhosos que são as crianças!
Uma fotografia que falou mais alto ainda do que as palavras.
Que belíssimo conjunto de foto e texto.
Lições de como fotografar e escrever bem, sem redundâncias. Até parece fácil, não é?
Beijinho.
Um texto que não pode deixar ninguém indiferente. Comovente, comovente. E que bela foto!
Excelente escolha de um texto excelente. Bem ilustrado com a foto à altura.
Muito belo e comovente
� preciso ter muito cuidado com as crian�as,oh se � Sei pela m filha.
E eu, apesar de estar longe de ser crian�a, percebo o desenho da neve preta no Natal porque perdi os meus pais exactamente no Natal e de modo brutal...
a pureza das emoções à flor da pele e sob a forma de subtis e diferentes formas de expresão. Conheço histórias de crianças k pela sua diferença foram puinidas pelos Prof. de uma forma ou outra. Algumas com minhas filhas em k a criaividade lhes eram cerceada.
O olhar da criança k faz 3 riscos e se espanta pq nós, adultos, os todo poderosos adultos, não vemos o k lá está: mãe e pai na pria com ela, a jogarem`a bola...., p.exº.
Belo e oportuno texto no mmt em k o tribual decide da forma k decide sobre a menina adoptada pelo casal e k designam por menina da Sertã....Onde a preocupação com o tão badalado " SUPERIOR interesse da criança"?
Bjs
Luz e paz contigo e em ti
:)
Cai neve dentro de cada um. Às vezes apaga o sol e fica escuro. As crianças sofrem, como os adultos. E os adultos sofrem como crianças. E o mais que tenho a dizer é que não entendo como é que um professor pode catalogar como "Mau" um desenho que um menino "dessa idade" tenha feito. Já isso me parece um floco de neve escura sobre o sonho que se quer iluminado.
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