quinta-feira, novembro 19, 2009

A propósito da minha fotografia desta semana...


Sal e pimenta (Foto de S.)


Sal e pimenta q.b.

Quem os visse de costas não saberia de que se tratava. Eram duas figuras de loiça branca e formas rectilíneas, coroadas com tampas arredondadas em metal cinzento, perfeitamente iguais, distinguindo-se uma da outra unicamente pela letra diferente que lhes adornava a barriga. Vistas de longe, mais pareciam dois seres etéreos de cabelos prateados, vestidos com alvas túnicas, viajando lado a lado pelo mundo em barco de madeira escura. Exploravam desde sempre o universo dos sentidos, recolhendo experiências, acrescentando alvitres, resolvendo questões essenciais ao sucesso existencial que, por vezes, parecia em vias de o não ser.
Tinha sido intenção do artesão que os concebera fazê-los exactamente iguais, à parte o pormenor dos umbigos em formato diverso. Pois entendia ele, homem de saberes e de sabores, que a utilidade de um saleiro e de um pimenteiro está intimamente ligada com a necessidade infindável de liberdade e de descoberta humanas. Assim sendo, exigira- se a si mesmo permitir que o uso do seu conteúdo tivesse apenas a ver com o cuidado posto nas mãos de quem os manuseasse e não com o habitual e desigual número de orifícios das tampas.
Imaginava-os presentes sobre as mesas das famílias por esse mundo fora, placidamente entregues ao seu papel de complemento de uma refeição, como seguro contra receitas menos ousadas, ou ainda como ornamento puro e simples. E previa que em qualquer desses casos, dada a semelhança da sua compleição, eles seriam objecto da curiosidade de todos os que, ao pegar-lhes avidamente e não reparando no pormenor das letras, se interrogariam sobre qual era qual. E então, aquilo que não passara de um mero gesto, poderia tornar-se em algo mais complexo, correndo-se o risco de o sucesso de uma refeição ou de uma festa vir a ser arruinado. Pois bastava que alguma mão usasse de menor destreza para que o conteúdo do saleiro caísse desamparado sobre um bife que se queria apenas um pouco mais saboroso. Ou então, em caso extremo, que o pó preto escondido sob o disfarce da túnica branca enevoasse os arredores do prato em questão e atrapalhasse o nariz do comensal mais tímido às voltas com as regras da etiqueta. Fosse como fosse, estaria salvaguardada a liberdade, condimento essencial a ter em conta também nas comidas.

― Pronto, vão agora à vossa vida. A minha tarefa acaba aqui ― disse o artesão com um sorriso nos lábios, embrulhando cuidadosamente o saleiro e o pimenteiro num fino papel vermelho salpicado de sonhos.
M

Fotografia e texto publicados no Fotoescrita em Janeiro de 2005

9 comentários:

Benó disse...

Só tenho uma palavra EXCELENTE.

Teresa David disse...

Além de excelente espero que os objectos, agora arvorados a personagens, tenham muita serventia para fazerem juz a um texto desta qualidade!

Anónimo disse...

Só mesmo tu, Manuela. Mt bem.
mj

bettips disse...

Escrita que nos revela um pouco do teu lado irónico - que do poético sabemos - transformando dois utensílios de design em peças únicas, com personalidade própria.

Conceição Paulino disse...

M, li ontem este teu texto e, mais uma vez nos traz a tua boa prosa,a criatividade, a linguagem poetica sobre algo aparentemente banal com uma pitada q.b. de ironia que brinca. Excelente texto. Parabéns e obrigada pela partilha.
Bjs e ;))

Conceição Paulino disse...

esqueci-me de vos deixar um convite. Faço-o aqui. nomeu blog
acordavida.blogs.sapo.pt a foto um acróstico sobre a palavra CONDIMENTO.
Bjs e ;))

Justine disse...

De como a metamorfose é possível, por meio de palavras mágicas, prenhes de sentidos e ternuras. Encantada, cumprimento-te:))

Belisa disse...

Um texto maravilhoso que me leva a querer ler,ler e ler mais!
E acabo "com um sorriso nos lábios" e a sonhar... Obrigado!

Licínia Quitério disse...

Aqui está uma bela prosa bem condimentada de imaginação, rigor e sensibilidade. Um mimo!