quinta-feira, maio 14, 2020

11. Mónica



Se eu fosse ainda criança, ainda!?, primeiro seria muito infeliz e a seguir trataria de me tornar adulta. Lembro-me tão bem que tive pressa de crescer, a minha avó paterna dizia que eu já tinha nascido velha, sempre de sobrolho franzido, para a minha mãe eu era uma refilona, pareces uma velha chata. Lembro-me de discutir com os meus pais as ordens “comem na cozinha” ou “vão dormir” ou “saiam da sala” porque há visitas ou porque os assuntos não eram para crianças ou “é assim porque eu é que mando”, o argumento xeque-mate. Não me calava, os meus pais ainda ensaiavam o argumento “os avós nunca me deram hipóteses de falar assim com eles”. Como se isso me interessasse. Nem os meus avós me interessavam, tratavam-nos como seres sem voto na matéria, pedir licença para falar, isso é que era bom. Quando era criança tinha muita liberdade, três ou quatro obrigações, uma família de gorilas como dizia o meu pai e a meu ver havia também muita injustiça com as crianças, muitos segredos, muitos tabus e mais tarde como rapariga outras tantas injustiças apesar da minha mãe ter iniciado a luta de emancipação feminina na família. Lembro-me tão bem de ter pressa para crescer para ser dona da minha vida, nunca mais ter que comer sopa, vestir-me à minha vontade, não ter que andar de cabelo rapado, não receber ordens estúpidas sem uma explicação, não levar tabefes do meu irmão mais velho, ter a minha casa com as minhas coisas sem explicar porquê que as guardava sem sofrer os raides de deitar para o lixo que a minha mãe de vez quando fazia, para que é que guardas tanta porcaria. Mal sabia eu que, adulta, haveria de copiar os comportamentos dos adultos e continuar a receber ordens estúpidas sem explicações, como se eu fosse um adulto sem cérebro. Pois é, ainda assim gosto muito de ser adulta, não abro mão das minhas conquistas, do meu estatuto de autonomia, da minha declaração de independência, não quero ser criança, nem ainda nem outra vez, peço desculpa mas não entro na brincadeira ahahahahah 
Mónica

8 comentários:

Margarida disse...

Muito bom, Mónica! Gosto da foto - sobrolho franzido! HA HA HA

Justine disse...

O retrato da infância de quase todos nós, com os sonhos, os desejos e as frustrações. A fotografia mostra que manténs hoje o mesmo rosto de criança, donde depreendo que mais alguma coisa terá restado...

Licínia Quitério disse...

Bem retratados os conflitos do crescimento.

Anónimo disse...

Sempre refilona!!!!
Luisa

Isabel disse...

Mas a foto está muito gira!

bettips disse...

Muito engraçado o instantâneo da fotografia! E a descrição do que (aqui)pensaste retrata muito bem o "refilamento" que parece acompanhar-te. Ficou-te o traço: nunca sem questionar!

M. disse...

Uma notável descrição da tua infância. Se a fazes deste modo é porque, apesar da contrariedade, foi possível teres esse espaço de liberdade de reacção a juntar à tua própria maneira de ser. Penso eu...

mena maya disse...

O máximo esta tua foto!!! E sim também tive uns cortes de cabelo à altura!!!