segunda-feira, janeiro 01, 2007

No primeiro dia de 2007

















«João Mau-Tempo não tem corpo para herói. É um pelém de dez anos retacos, um cavaco de gente que ainda olha as árvores mais como alpenduradas de ninhos do que como produtoras de cortiça, bolota ou azeitona. É uma injustiça que se lhe faz obrigá-lo a levantar-se ainda noite fechada, andar meio a dormir e com o estômago frouxo o pouco ou muito caminho que o separa do lugar de trabalho, e depois dia fora, até ao sol posto, para tornar a casa outra vez de noite, morto de fadiga, se isto é ainda fadiga, se não é o transe da morte. Mas esta criança, palavra só por comodidade usada, pois no latifúndio não se ordenam assim as populações em modo de prever-se e respeitar-se tal categoria, tudo são vivos e basta, que os mortos é só enterrá-los, não é possível fazer trabalhar os mortos, esta criança é apenas uma entre milheiros, todas iguais, todas sofredoras, todas ignorantes do mal que fazem para merecerem tal castigo.»

«Todos os dias têm a sua história, um só minuto levaria anos a contar, o mínimo gesto, o descasque miudinho duma palavra, duma sílaba, dum som, para já não falar dos pensamentos, que é coisa de muito estofo, pensar no que se pensa, ou pensou, ou está pensando, e que pensamento é esse que pensa o outro pensamento, não acabaríamos nunca mais. Melhor é declarar que estes anos de João Mau-Tempo vão ser os da sua educação profissional, no sentido tradicional e campestre de que um homem de trabalho tem de saber de tudo, tão bom para ceifar como para tirar cortiça, tão destro a valar como a semear, tão de bom lombo para carregar como de rins para cavar. Este saber transmite-se nas gerações sem exame nem discussão, é assim porque sempre assim foi, isto é uma enxada de gaviões, isto uma gadanha, e isto uma gota de suor. Ou cuspo branco espesso em tarde de fornalha, ou pancada de sol em cima da ganacha, ou jarretes desfalecidos de pouco alimento. Entre os dez anos e os vinte há que aprender tudo e depressa, ou não teremos patrão que nos aceite.»

Levantado do Chão, José Saramago, Caminho


Foto de M






5 comentários:

Anónimo disse...

Curiosamente a par do Memorial do Convento, este é o outro livro que tenho como preferido do Saramago, e as palavras que aqui figuram com a ilustração que as superlativa agradaram-me deveras.
Bjs
TD

Anónimo disse...

Um bom ano de 2007, com muita saúde, paz, amor e a concretização de todos os teus sonhos e projectos.
Um beijinho
RB

Maria P. disse...

Excelente para começar!


Que se realizem os teus desejos são os meus votos, neste #primeiro dia do resto da nossa vida" - Sérgio Godinho, porque gosto de o ouvir:)

Beijinhos:)

Licínia Quitério disse...

Com "Levantado do Chão" descobri a grandeza do Saramago. Não me enganei. Ainda hoje, quando me dizem da dificuldade de o lerem, aconselho a que comecem por este livro. "As Pequenas Memórias" trazem um travo de retorno a esta aparente leveza de estilo. Bom, sou mesmo tarada por este escritor. Acho que também gostas muito.
Beijo.

Antonio stein disse...

Um Fantástico 2007 e, que te traga tudo de bom.

O Meu sincero desejo.

António