quinta-feira, maio 21, 2020

11. Mónica


 
Os meus antónimos de alegria
O que serão os meus antónimos de alegria? Parece-me que se podem resumir a um, para simplificar e para não ter que pensar muito em muitas coisas desagradáveis, assim fico-me pela mentira. A mentira foi um letreiro de letras grandes e luminosas que me acompanhou durante os dois anos que vivi em Benguela. Não sabia que isto existia. Senti-me a viver rodeada de pessoas tão escorregadias como uma lâmina de água no pavimento de uma estrada. Concentrei-me em ouvir e estar calada, em caminhar atenta com o olhar no infinito, a ver e registar para mim, a desconfiar dizendo que estava tudo bem. A mentira está nos contrastes sociais, económicos, na luta de sobrevivência, na falta de condições básicas de vida, não há torneira, não há interruptor, há escola sem cadeiras, há janelas sem vidros e sem redes mosquiteiras, há casas sem chão, há guardas que são contratados à empresa do chefe da policia, há colegas que roubam fuba e açúcar para dar de comer em casa, há homens que usam as mulheres a seu bel-prazer porque é assim, há quem diga que tem um amigo general para facilitar, há quem conduza sem carta e paga a gasosa, há quem se queixe que o estado lhe ficou a dever milhões, há quem peça a comissão do negócio, a lista não acaba. A mentira estava em tudo e em todo o lado, era oficial, era o modo de vida, estava na minha casa, no meu trabalho. A fotografia mostra as camadas da vida em Luanda, eu estava num condomínio fechado (esqueçam a noção turística de condomínio fechado) com guardas, gerador próprio, piscina vazia, e da minha janela fotografei o que me rodeava, até onde a máquina fotográfica alcança mostra as gruas do progresso e da dita civilização. Da outra janela via um campo de bananeiras com um riacho de águas paradas que servia para a lavagem de carros, um trabalho vulgar feito com um balde de água e um pano, e crianças brincarem. Tudo era mentira sob o ponto de vista dos meus valores, do meu senso comum, para mim foi-se a alegria.
Mónica

9 comentários:

Margarida disse...

100€ de acordo, Mónica. Excelente descrição

Justine disse...

Um texto quase em catarse, e como eu concordo contigo! a mentira igual a modo de vida, a mentira igual a viver ignorando a miséria, a desigualdade, a injustiça, a dignidade humana! Um antónimo que contém todos os antónimos de alegria...

mena maya disse...

impossível não sentir o peso da tua tristeza

Margarida disse...

100% claro! fica o reparo!

bettips disse...

Admiravelmente descrita a tua tristeza. A visão na fotografia é terrível: onde mora a alegria? Deve ser(te)uma memória penosa. E sabemos ainda mais: que continua.

Anónimo disse...

O perfeito contraste com a alegria
Luisa

Mónica disse...

estou aqui, estou bem, voltava a Benguela já ia avisada :D

Isabel disse...

É sempre triste ver a pobreza, longe ou perto. Foi há quantos anos?

Mónica disse...

foi em 2012, está a data na fotografia, deixei de propósito a máquina fotográfica configurada para aparecer a data nas fotografias, quando não quero q a data apareça corto a fotografia