Passaram-se os anos que me transportaram da criança que fui para a adulta que sou agora, e que provavelmente ainda será outra, porque inevitavelmente vou interpretando a minha história de vida de acordo com as circunstâncias e o que vou sentindo em cada momento. Além disso, julgo que a minha memória pode ter ficado um pouco nublada pela distância e importância que os acontecimentos tiveram ou não na minha vida. Acontecerá o mesmo com outras pessoas.
Os meus avós maternos morreram muito cedo, num intervalo de cerca de cinco anos entre as duas mortes, provocadas por doenças graves, deixando seis filhos, quatro deles menores. Portanto, o que sei e sempre ouvi sobre eles, foi-me contado pela minha mãe e por fotografias, que felizmente as houve. Ao menos isso.
Quanto aos meus avós paternos, só conheci a minha avó. O meu avô morreu antes de eu nascer, deixando a viúva e a filha solteira com poucos proventos e ao meu pai o encargo de as ajudar nas despesas correntes. Casado, com dois filhos, tornando-se difícil manter duas casas, decidiu a família mudar-se para casa dos meus avós em Lisboa, onde aliás o meu pai tinha nascido. Foi então adaptado o espaço para receber os novos quatro membros da família. A avó Júlia era uma pessoa discreta, sensata, calada, e não saía com os netos, ao contrário da minha tia Chanel que passeava connosco, nos lia histórias, “fazia macacadas” que nos provocavam o riso, imitava as nossas tolices, era divertida. O estilo da avó era diferente. Uma das imagens que conservo dela é a sua presença carinhosa a meu lado na varanda, para eu apanhar sol e aquecer um pouco, pois sempre fui friorenta. Era no corrimão dessa varanda que estava presa uma corda com um cestinho que descia do 3º andar até à rua sempre que fosse preciso comprar legumes ao vendedor habitual que passava no bairro. Puxávamo-lo cheio, retirávamos o conteúdo e reenviávamo-lo com o dinheiro do pagamento. E de novo subia o cesto. Tenho essa imagem na minha cabeça, assim como a da peixeira com a canastra do peixe pousado num oleado e o leiteiro com as latas de leite e medidas, mas esses subiam a escada e batiam à porta. Recordo também os rebuçados que a avó guardava na primeira gaveta da cómoda e nos dava, a mim e ao meu irmão, sempre que íamos ao seu quarto. Aliás, a porta estava sempre aberta durante o dia. À mesa das refeições nunca a ouvia dar qualquer opinião, ao contrário do meu pai ou da tia Chanel. Recordo que gostava de comer laranja com marmelada, hábito que mantenho por influência dela. Quando eu era mais pequena ela, sempre elegante, saía com a filha, e passámos férias juntos mais do que uma vez. Mais tarde, com a idade e após uma cirurgia mal sucedida a um glaucoma, foi cegando, o que a obrigava a estar horas sentada no cadeirão do quarto, de olhos fechados, pensativa, silenciosa, e era a minha mãe quem lhe lia o jornal. Eu, já adolescente, fazia-lhe perguntas sobre a sua vida de solteira no Porto, sobre os pais e os irmãos, sobre o meu avô, como se tinham conhecido, onde, e ela contava-me como tinha sido o dia do casamento aos 19 anos, os trens com os convidados, a vinda do meu avô para trabalhar em Lisboa. Complementava os assuntos das suas conversas com provérbios, como «O seguro morreu de velho», «Bem se canta na Sé, mas é para quem é», mas havia um em particular que me chocava porque percebia que o aplicava a pessoas: «Todo o burro come palha, a questão é saber-lha dar». Ela lá saberia de experiência feita... Morreu aos 91 anos serenamente na sua cama, durante a noite, mas para mim foi horrível, nunca mais entrei naquele quarto com à-vontade, olhava sempre de esguelha para a cama. (Confesso que lido bastante mal com a morte). Bem dizia ela «O seguro morreu de velho». E eu só mais tarde encontrei o provérbio completo «O seguro morreu de velho e D. Prudência foi-lhe ao enterro» no meu Rifoneiro Português por Pedro Chaves, Editorial Domingos Barreira.
M
4 comentários:
Que bonitas e bem contadas histórias encontramos hoje aqui. Afinal os tais avós estão vivos na recordação dos seus netos.
Luisa
quando oiço estas histórias fico com a sensação que é uma pena não sermos crescidos para fazer-lhes perguntas e conhecê-los melhor, mas é assim mesmo
Texto fluido e claro, que me encantou na sua sensibilidade coloquial - como se estivéssemos frente a frente numa conversa sentida! Muito bom, M.
Um texto com tantas recordações. O "enredo" prende a nossa atenção
Teresa
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