quarta-feira, janeiro 28, 2009

A propósito da palavra "Brinquedo", uma fotografia e um texto que repesquei...

Visita ao sótão
(Foto de S.)

Memórias Soltas

Não foi como presente que este fogão chegou até mim. Terá sido um passar de mão, por causa das proporções que a vida que cresce connosco nos impõe.

Quando o recebi da minha tia Chanel já ela tinha atingido há muito o seu tamanho de adulta e eu era uma criança com mãos pequenas e hábeis a manipular panelas e cafeteiras de bonecas.
O fogão, comprado em Berlim por um amigo do meu avô paterno, tinha sido oferecido à minha tia como prenda de anos. Juntamente com ele vinha um livro de receitas de cozinha para crianças, em alemão gótico: Haustöchterchens Kochschule – Für Spiel und Leben –.* Ainda o conservo, pela antiguidade. Tem na capa uma menina vestida à moda do início de 1900, de avental branco engomado sobre um vestido cor-de-rosa com gola e punhos brancos. A enfeitar-lhe o cabelo louro apanhado no alto da cabeça com uma trança fina, uma fita no mesmo tom do vestido. Do seu rosto delicado de rapariguinha bem comportada emana um sorriso prestes a misturar-se com as claras de ovo subindo em castelo dentro da taça onde ela as bate em remoinhos manuais.
Ora sendo a minha tia de nacionalidade portuguesa, e não tendo até esse momento conhecimento de outras línguas para além da sua, não faço ideia como terá sido resolvida esta fantasia germânica na sua infância. Não imagino o meu avô – nessa época o único na família versado em alemão – a pôr de lado os seus afazeres científicos e literários para se dedicar às experiências culinárias da filha, ainda que filha dilecta. Talvez alguma boneca, quem sabe oriunda de uma loja de brinquedos berlinense, a tenha ajudado a solucionar o problema. Provavelmente aquela Ingrid de corpo rígido e expressão parada em rosto de loiça, com boca de lábios finos bem desenhados, eternamente entreaberta, mostrando uns dentes minúsculos (de boneca, poder-se-á dizer com justeza neste caso). Como se as palavras tivessem ficado congeladas dentro da sua boca, a meio caminho no esforço de entendimento entre as duas culturas: a germânica e a portuguesa. Nela só as pálpebras, os braços e as pernas se moviam, ligeiramente, o que não me admira, pois quando a conheci passava horas deitada numa gaveta de cómoda, entre as roupas da minha tia. No entanto, volta e meia, a tia Chanel retirava-a daquele sono resguardado da infância para me mostrar as habilidades da sua companheira de fantasia. Poisava esses vinte centímetros de altura de engenho alemão em cima de uma mesa e, segurando-a com cuidado pela cintura, orientava-lhe o corpo hirto com um jeito especial, de modo a que ela desse uns passos. Nos tempos actuais do meu tamanho de adulta, sempre que me levanto trôpega da cama ou de qualquer assento em que me tenha afundado, vem-me à ideia aquele andar de boneca.
Confesso que nunca achei graça à Ingrid, pois não lhe encontrava semelhanças com a minha realidade, nem com os meus devaneios de criança. Mas presumo que a minha tia, para além de a ter conservado a seu lado como amiga de brincadeiras, encontrou também nela inspiração para a sua capacidade criativa em matéria de moda. Lembro-me da Ingrid com um vestido de cetim azul forte adornado com punhos e gola de renda branca. E lembro-me também da peculiaridade que sempre conheci na tia Chanel: amputava todas as golas das blusas e vestidos que usava, e substituía-as por outras removíveis. Tinha meia dúzia delas, talhadas e costuradas por ela em piqué branco que colocava depois livremente nas blusas e nos vestidos degolados, conforme as necessidades higiénicas o exigiam. E, para que não caíssem ou rodassem em volta do pescoço tipo carrossel de feira, costumava prendê-las com um alfinete de ouro com uma pedra branca incrustada. Julgo que essa pedra tinha sido o único sobrevivente de um par de gémeos que habitualmente apertavam os punhos das camisas de alguém na família.
Volto ao fogão, porque memórias soltas são, para mim, uma miscelânea de trilhos que se cruzam no meu passeio pela vida. Podia fazer-se nele cozinhados de verdade, para o que bastava acender as duas lamparinas de álcool guardadas nos compartimentos por detrás das duas pequenas portas em baixo. Esteve algum tempo no meu quarto, sobre o chão de soalho onde eu me ajoelhava sempre que as minhas bonecas resolviam oferecer jantarinhos às amigas. Estrelei nele um ovo, creio que uma única vez e sob vigilância adulta, pois tornava-se perigoso deixar o lume entregue a mãos de criança. Só não me recordo se servi o ovo ao pequeno-almoço de uma das minhas bonecas ou se o comi eu. Ambas as coisas terão sido possíveis…
M

* - Em tradução de amadora Escola de cozinha para meninas - Como jogo e para a vida real.

3 de Abril 2005

7 comentários:

bettips disse...

Ah... a tia Chanel e as suas excentricidades que deliciariam as crianças que pensávamos poder ter sido...
Bj

Anónimo disse...

Em minha casa existiu um fogão idêntico, era lindo, a marca não sei, era demasiado pequena para me interessar. Bem gostava de o ter mais tarde como peça numa casa de campo. As portinhas eram amarelas, sempre muito bem luzentes com a solarine que levava. E no Inverno aquecia a cozinha...
Também fiz mt jantarinhos numa fogão de ferro, mas mais pobrezinho.
Uma boa parte dos m/brinquedos não estão no Museu do Brinquedo, mas quase...estão em casa de um dos m/irmãos que é restaurador e tem mt coisas antigas.
Mas os que enviem para o nosso BRINQUEDO estão comigo.
mj

mena maya disse...

És uma excelente contadora de histórias!

Amanhã brincamos mais!

Beijinho

bettips disse...

É...às vezes parece que brincamos às casinhas ou ao esconde-esconde!
Como diz a Mena, vens brincar connosco amanhã?
Bj

Anónimo disse...

M:
Deliciosa esta história...
Beijo
Agrades

Teresa David disse...

Também achei a história uma delicia mas o que me chamou mais á atenção foi que tive um fogão destes em miniatura onde estava sempre a cortar os dedos por ser de ferro, que acabou por ser o tema da minha prova oral da 1ª classe, provocando valentes gargalhadas ás professoras devido aos detalhes dos meus acidentes que contei, segundo elas, com mestria.

Luisa disse...

Foi muito bom ter aparecido este tema do brinquedo no nosso jogo porque nos permitiu ler histórias deliciosas das nossas infâncias. Este texto está magnificamente escrito e é o prazer lê-lo.