quinta-feira, dezembro 19, 2019

2. Justine



Dia de Natal

Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
De falar e de ouvir com mavioso tom,
De abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia de pensar nos outros – coitadinhos – nos que padecem,
De lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria
De perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
De meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
Como se de anjos fosse,
Numa toada doce,
De violas e banjos,
Entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
A voz do locutor
Anuncia o melhor dos detergentes.
Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
Com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
Cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
As belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.
A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
E compra – louvado seja o Senhor! – o que nunca tinha pensado comprar.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
A sua comoção é tanta, tanta, tanta,
Que nem dorme serena.

Cada menino
Abre um olhinho
Na noite incerta
Para ver se a aurora
Já está desperta.
De manhãzinha
Salta da cama,
Corre à cozinha
Mesmo em pijama.

Ah!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Na branda macieza
Da matutina luz
Aguarda-o a surpresa
Do menino Jesus.
Jesus,
O doce Jesus,
O mesmo que nasceu na manjedoura,
Veio pôr no sapatinho
Do Pedrinho
Uma metralhadora.

Que alegria
Reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
Fuzilava tudo com devastadoras rajadas
E obrigava as criadas
A caírem no chão como se fossem mortas:
Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá
Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
Fingiam
Que caiam
Crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal
Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
De Sonhos e Venturas.
É Dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.

(excerto do poema Dia de Natal de António Gedeão)

(fotografia de uma escultura numa exposição no MAAT)

5 comentários:

Mónica disse...

o Bach outra vez? é um compositor de Natal? esta cadeira presumo que seja moçambicana, dps de um dos acordos de paz fizeram-me varias cadeiras com armas, será?

M. disse...

Uma escultura espantosa para um poema muito belo.

Mónica disse...

fizeram-se e não "fizeram-me" :D peço desculpa p erro

Justine disse...

Mónica, estivemos quase uma semana sem Net aqui em casa, daí a resposta apenas hoje: tenho ideia de que a exposição que vi no MAAT era de esculturas de vários países, mas não registei o nome do autor desta que tanto me impressionou.
Quanto ao Bach era mais o gosto do Gedeão...embora eu também goste!

Mónica disse...

maputo 2004 http://cem-mil.blogspot.com/2004/11/plano-99982.html