quinta-feira, dezembro 12, 2019

3. Licínia



Ela sempre começava assim:
Pensava que fosses tu e foi por isso que não reagi mais depressa. A mala a fugir-me do ombro, eu a voltar-me e não eras tu”.
Ele sempre replicava:
Porque é que havia de ser eu?”
E enfastiado:
E se fosse, por que raio ia puxar-te a mala?”
Nesse ponto da conversa, ela continuava e ele ouvia, ou não ouvia, que era mais habitual abrir o jornal, por os óculos e limitar-se a pontuar o monólogo com ”um um”, “am am”, mais espaçados à medida que a fala avançava. Ela parecia não se importar, sentava-se, cruzava as pernas e entusiasmava-se a contar pela milésima vez o que lhe acontecera naquele ano, uns dias antes do Natal. Nessa altura, já não era ele que ali estava, molengão, desinteressado, a puxar por cigarro após cigarro. O outro olhava-a atentamente, seguia-lhe os gestos, bem expressiva a achava e ainda atraente, as rugas aos cantos dos olhos a darem-lhe um encanto de fruta madura. A expressão do outro, o interesse do outro, a graça com que o outro ajeitava a melena, inspiravam-lhe o conto que o Natal lhe trouxera, há uns anos, ao ser surpreendida pelo meliante que lhe sacou a mala e a deixou de mãos vazias, assustada, a gritar, sim, a gritar, a plenos pulmões, que o agarrassem, que era ladrão, que era ladrão, sem que ninguém se aproximasse. Nem imaginavam como se sentira só e desamparada, sem nada na mão, uma mulher sem uma mala na mão é como se estivesse despida. Aí ele costumava dizer “pois”, e virava a página do jornal. O outro tinha um sorriso maroto, ela fazia de conta que não notava e continuava. Quando conseguiu chegar à esquadra, muito afogueada, a contar em catadupa de palavras o que lhe acontecera, vítima de um assalto, ali, senhor guarda, agora mesmo, ninguém acudiu, ali, ao pé do jardim, senhor guarda. Ele interrompia-a, com enfado:
Sim, já contaste, o guarda disse para te calares e te sentares e só depois de acalmares começou a tomar nota da ocorrência, não foi?”
E voltava ao jornal, agora de página dobrada ao meio, a apagar o cigarro. Ela sentia um friozinho no estômago, pensava em calar-se, levantar-se, sair, mas logo o outro a perguntar, já mais perto dela:
E então, como foi?”
Era por isso que arranjava coragem para acabar o seu conto de Natal, a dizer que a mala tinha aparecido, sem dinheiro, claro, mas com os documentos todos, o que já não foi tão mau. Era por isso que não chorava quando ele resmungava:
Agora só para o ano é que voltas a contar essa treta, OK?”
O outro lá estava, a dizer:
Tens de me contar tudo outra vez. Com mais pormenores”.
Ajeitava a melena. O jornal continuava. Ela não saía.
Licínia
(A foto foi tirada no Museu da Fundação Folon, perto de Bruxelas)

1 comentário:

M. disse...

Um texto inquietante pelo que descreve e ao mesmo tempo sugere de desencontros entre as pessoas.