Ela
sempre começava assim:
“Pensava que
fosses tu e foi por isso que não reagi mais depressa. A mala a
fugir-me do ombro, eu a voltar-me e não eras tu”.
Ele sempre
replicava:
“Porque é que
havia de ser eu?”
E enfastiado:
“E se fosse, por
que raio ia puxar-te a mala?”
Nesse ponto da
conversa, ela continuava e ele ouvia, ou não ouvia, que era mais
habitual abrir o jornal, por os óculos e limitar-se a pontuar o
monólogo com ”um um”, “am am”, mais espaçados à medida que
a fala avançava. Ela parecia não se importar, sentava-se, cruzava
as pernas e entusiasmava-se a contar pela milésima vez o que lhe
acontecera naquele ano, uns dias antes do Natal. Nessa altura, já
não era ele que ali estava, molengão, desinteressado, a puxar por
cigarro após cigarro. O outro olhava-a atentamente, seguia-lhe os
gestos, bem expressiva a achava e ainda atraente, as rugas aos cantos
dos olhos a darem-lhe um encanto de fruta madura. A expressão do
outro, o interesse do outro, a graça com que o outro ajeitava a
melena, inspiravam-lhe o conto que o Natal lhe trouxera, há uns
anos, ao ser surpreendida pelo meliante que lhe sacou a mala e a
deixou de mãos vazias, assustada, a gritar, sim, a gritar, a plenos
pulmões, que o agarrassem, que era ladrão, que era ladrão, sem que
ninguém se aproximasse. Nem imaginavam como se sentira só e
desamparada, sem nada na mão, uma mulher sem uma mala na mão é
como se estivesse despida. Aí ele costumava dizer “pois”, e
virava a página do jornal. O outro tinha um sorriso maroto, ela
fazia de conta que não notava e continuava. Quando conseguiu chegar
à esquadra, muito afogueada, a contar em catadupa de palavras o que
lhe acontecera, vítima de um assalto, ali, senhor guarda, agora
mesmo, ninguém acudiu, ali, ao pé do jardim, senhor guarda. Ele
interrompia-a, com enfado:
“Sim, já
contaste, o guarda disse para te calares e te sentares e só depois
de acalmares começou a tomar nota da ocorrência, não foi?”
E
voltava ao jornal, agora de página dobrada ao meio, a apagar o
cigarro. Ela sentia um friozinho no estômago, pensava em calar-se,
levantar-se, sair, mas logo o outro a perguntar, já mais perto dela:
“E então, como
foi?”
Era por isso que
arranjava coragem para acabar o seu conto de Natal, a dizer que a
mala tinha aparecido, sem dinheiro, claro, mas com os documentos
todos, o que já não foi tão mau. Era por isso que não chorava
quando ele resmungava:
“Agora só para o
ano é que voltas a contar essa treta, OK?”
O outro lá estava,
a dizer:
“Tens de me
contar tudo outra vez. Com mais pormenores”.
Ajeitava a melena.
O jornal continuava. Ela não saía.
Licínia
(A
foto foi tirada no Museu da Fundação Folon, perto de Bruxelas)
1 comentário:
Um texto inquietante pelo que descreve e ao mesmo tempo sugere de desencontros entre as pessoas.
Enviar um comentário